21 de ago. de 2013
Relato Audax 400 SAC - 17 e 18 de agosto de 2013
21 de ago. de 2013 by Sociedade Audax de Ciclismo
Aviso: texto absurdamente longo Antes do relato da prova propriamente dita, um pouco de contexto, a respeito das últimas três provas acima de 200km que participei no último ano, não tendo completado nenhuma delas.
Minha preparação para este Audax 400 começou logo após o Audax 400 do ano passado, no mesmo trajeto, quando não consegui completar a prova, desistindo no km 300 aproximadamente (na altura de Passo do Sobrado). Naquela ocasião, eu estava com uma bicicleta mais pesada, carregava bastantes coisas (roupas principalmente, pois estava muito mais frio do que este ano), e o que acredito ter sido minha maior "falha": paradas demais, longas demais. Levava uma planilha feita pelo Paulo Roberto Batagini, e ao perceber que a minha média geral já estava abaixo de 13 km/h, optei por desistir.
Percebi que precisava de uma bicicleta mais apropriada ao randoneirismo, modalidade que pretendo continuar praticando ainda por um bom tempo. Ao longo dos meses, reuni os componentes e montei a tal bicicleta, que funcionou muito bem nos treinos e em algumas provas de 200km no verão. Entretanto, no Audax 300 "da serra", com essa bicicleta, acabei desistindo novamente, ao redor do km 200. Apesar de ser um trajeto particularmente difícil, dessa vez não houve como culpar o equipamento, e as paradas que fiz foram tão breves quanto possível. Em especial, o desempenho na ida foi muito bom, acompanhando alguns "feras" dos Audax, como o Edimar Graxa, o Vitor Matzembacher e o Carlos Polesello, por exemplo. Entretanto, o preparo foi insuficiente para continar acompanhando esse grupo após o PC 150 em Estrela.
Após essa segunda desistência, que já foi relatada em outro momento (citando a persistência vencedora do Erich Brack, que foi ingenuamente subestimada por mim), comecei a perceber que havia "algo mais", que o meu modelo de preparação não estava considerando. Havia, claro, um componente de "bicicleta apropriada", que se não estava perfeito, estava na verade já bem acima do mínimo, não sendo mais motivo de preocupação. Havia também um componente de preparo físico, mas isso não deveria ser desculpa, porque eu treino regularmente, sou saudável, e estou em condições físicas dentro da média de quem faz audax, ou até melhor se considerarmos os exemplos de superação: gente que, apesar de vários fatores em contrário, mesmo assim completa provas difíceis.
Minha nova teoria passou a incluir o componente psicológico, mas não da forma como normalmente é considerado quando se fala que "Audax é X% psicológico" (sendo X um número entre 50 e 99). Em geral, são citadas à exaustão a capacidade psicológica de SUPERAÇÃO do desafio, de PERSEVERANÇA frente à dificuldade, e até de FÉ na própria capacidade. Olhando para trás, as duas últimas desistências foram motivadas não pela falta de capacidade, pois eu sabia que era perfeitamente possível completar a prova SE EU REALMENTE QUISESSE. Ou seja, o que faltou foi o componente QUERER. Eu sabia que completar as provas (essas em que eu desisti) significaria pedalar em condições de privação e desconforto bem conhecidas, e eu não estava DISPOSTO a trocar esse desconforto e essa privação por "mais uma medalhinha".
O fato é que nesse 300 da serra, ao ver na linha de chegada aquelas mesmas pessoas que pedalavam ao meu lado enquanto eu pensava em desistir, me bateu um arrependimento IMENSO, uma sensação de exclusão, de não-pertencimento, de ter "traído a causa", de não ter justificativa para abrir mão de algo que estava ao alcance, de certa forma somente por "preguiça".
Pois bem, segui me preparando, e chegou o 300 do trajeto tradicional, em julho passado. Bicicleta totalmente envenenada (nunca esteve melhor), e uma quantidade de treino adequada, embora não ideal. Na largada, um fato comovente, que também já relatei em outro momento: uma família que veio acompanhar a largada de alguém, e junto nessa família um menininho numa cadeira de rodas (depois fiquei sabendo que o apelido dele é Pipi, confere isso?). Aí eu pensei: "bah, agora é que eu não tenho MESMO como ser cara de pau de desistir por preguiça..." O menininho ali, talvez até nos mirando como algum tipo de modelo admirável, seria muito feio decepcioná-lo, seria um anti-exemplo...
Mesmo assim, duas coisas me incomodaram bastante naquela prova: uma, foi a incapacidade de manter a média horária desejada, durante a largada. Cheguei no segundo pedágio com 22 de média, e mesmo tendo tentado andar um pouco mais rápido, tive de diminuir pois sentia que estava em um nível excessivo de esforço... E segundo: nesse segundo pedágio, A BICICLETA QUEBROU, e eu tive de abandonar a prova querendo ou não... Justamente a bicicleta que eu montei PARA PODER completar provas, me tirou da prova...
Então, as próximas três semanas até o 400 estavam acumulando uma série de elementos desfavoráveis: duas desistências consecutivas em provas longas, dúvidas quando ao real preparo físico, bicicleta nem tão confiável, e apenas três semanas de preparo, uma delas ocupada quase toda por uma viagem a trabalho onde eu não teria oportunidade de pedalar nem meio quilômetro.
Aliado a isso tudo, o inverno, as longas e frias horas de escuridão noturna, a condição erma das estradas por onde costumamos passar, e as más experiências no trânsito de Porto Alegre, por onde pedalo diariamente para ir e voltar do trabalho, fazem com que às vezes a gente sinta que pedalar o audax é um pouco como cruzar um oceano em uma canoa: se algo der errado, ou mesmo se simplesmente a gente ficar pra trás do pelotão, estaremos nós, um ponto insignificante em cima de uma bicicleta insignificante na beira de uma estrada, de noite, longe de tudo e de todos, no frio, dependendo de que não fure pneu, e de que se fure a gente consiga consertar, de que não caia alguma peça pequena porém fundamental no meio de um tufo de macega, que o vento não seja contra e não chova de madrugada, que não acabe a pilha da lanterna... A experiência acumulada no nem tão pequeno número de provas noturnas que já participei dizia que a maioria dessas preocupações era infundada, mas mesmo assim essas preocupações existiram, e um dos objetivos que eu tinha era de, finalmente, com uma prova longa CONCLUÍDA com sucesso, quebrar esse encanto e finalmente entrar de novo nos eixos dos audaxiosos bem-sucedidos.
Terminada essa introdução (que já está mais longa que muito relato inteiro, mas fazer o que...), segue o relato da prova propriamente dita.
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Minha preparação final para esta prova começou na segunda-feira, quando por medo da falta de sono crônica, me determinei a deitar para dormir todos os dias no máximo às onze horas da noite. Não consegui nenhuma vez, mas em média onze e meia eu já estava deitado. Senti que isso me fez MUITO bem. Além disso, alimentação moderada, e nada de pedal destrutivo, somente as idas e voltas ao trabalho, na bike com que eu faria a prova (pra ir corrigindo alguma inadequação).
Resolvi também seguir uma dica do Marcelo Bueno, na verdade uma coisa bem óbvia mas que há tempos eu não fazia: levar barras de cereal para comer. Eu andava levando chocolate, salgadinho, mas no fundo no fundo só a barrinha é realmente, e a qualquer momento, satisfatória. Isso e o fato de ter colocado as barrinhas na bolsa de guidão, onde eu podia pegá-las a qualquer momento sem parar de pedalar, fez toda a diferença... Como última malandragem alimentar, um café preto com açúcar, dessa vez mais diluído (pra já contar como hidratação junto), na segunda caramanhola.
No dia da prova, levantei da cama às dez da manhã, tomei café, dei uma ajeitada final na parte mecânica (o que incluiu limar os dentes de duas das pinhas, que estavam pulando com a corrente nova - funcionou!), cozinhei um macarrão malandro para o almoço em família, e uma e meia da tarde saí em direção do DC Navegantes, que fica a 5km da minha casa.
Chegando no DC, muitos amigos, o briefing não tinha começado, vários ciclistas almoçando, fui pedir um suco. Olhei para a comida, a comida olhou para mim, e acabei "almoçando de novo", servi um prato pequeno com macarrão, frutos do mar, um pedaço de melancia, e muitos figos. Foi muito útil!
Uma ida ao banheiro, uma última verificação em tudo, e logo estávamos alinhados para a largada. Havia sol, pouco vento leste, um dia agradável para pedalar, e a motivação estava lá em cima. Nenhuma apreensão, mesmo sabendo dos quatrocentos quilômetros (escrevi por extenso de propósito) que viriam. Acho que isso se deve ao horário da largada, um horário muito mais natural do que COMEÇAR a pedalar na hora em que normalmente a gente já estaria indo dormir...
Seguimos pelas pontes, e o vento que inicialmente era a favor foi ficando cada vez mais de lado até chegarmos a Eldorado do Sul, o que significava que estaria a favor ao longo da 290. Dito e feito, entramos na 290 e estava muito fácil de andar num ritmo firme, todo mundo em pelotão tranquilo sem aquele desespero de um pegar vácuo do outro, conseguindo conversar sem perder o fôlego. Como já disse em outros momentos, tenho um monte de amigos que só vejo em Audax, e três deles com quem costumo conversar mais são aqueles que já mencionei: Vitor Matzembacher, Carlos Polesello e Edimar Graxa. Uma coisa que me deixou muito feliz nas últimas provas é perceber que tenho conseguido acompanhar eles. Uma curiosidade é que eles me tiram pra picapau (tenho certeza!) devido aos meus intermináveis resmungos e reclamações, assim como o apego mórbido a teorias pedalísticas de efetividade questionável...
A 290 é considerada por muitos a parte mais chata daqueles trajetos, e não sem razão. Felizmente, com as conversas rolando livremente, logo estávamos no pedágio, no bendito pedágio em que minha bicicleta havia quebrado exatamente três semanas atrás. Passamos por ele sem parar, e seguimos embora, por uma paisagem a partir dali já bem menos plana e monótona.
Logo em seguida, paramos para esvaziar a bexiga. Era o primeiro momento em que colocávamos o pé no chão desde a largada, e foi bom esticar as costas. Comi uma bergamota pela metade, porque o pessoal não perdeu tempo, subiu logo na bike e se eu ficasse ali comendo mosca (ou bergamota) ficaria pra trás com certeza.
Na subida da serrinha que tem perto de Arroio dos Ratos, o Graxa perguntou se a gente ia querer um sanduíche, porque ele estava ao telefone com um conhecido de Butiá que ia fazer uns sanduíches. Eu achei que era desnecessário, pois pretendia comer na Raabelândia, e assim como eu, a maioria agradeceu e recusou o sanduíche. Mas ainda antes do final da subida, olhei no GPS e estávamos recém no km 60, ou seja, estávamos somente na METADE do caminho até a Raabelândia (PC1, km 120)... Pensar em comida, acho eu, deixou o pessoal com fome, e acabamos pedindo ao Graxa que reservasse o tal sanduíche para nós.
Foi a melhor idéia. Já tendo pegado o belo pôr-do-sol, ao longo das onduladas colinas que separam Arroio dos Ratos e Butiá, paramos no restaurante indicado pelo Graxa, e foi grata a surpresa de ver os enormes sanduíches, feitos com quatro fatias de pão cada, com salada, frios e ovo cozido, sobre a mesa à nossa espera... Comemos com vontade e satisfação, acompanhados de uma Coca-Cola litrão, e rapidamente após o lanche muitos trocaram suas roupas e óculos, pegaram luvas, ligaram faróis e lanternas, e seguimos viagem. Meu farol não estava muito bom, mas felizmente eu tinha um novo, melhor, no capacete, e mais felizmente ainda estava rodeado de outros ciclistas que, esses sim, tinham faróis DE VERDADE.
Aquele trecho ao redor de Minas do Leão é o pior da prova, em minha opinião. Tanto pelo horário (início da noite) quando pelo enorme fluxo de caminhões (ali fica um dos maiores aterros sanitários do estado, além de ser uma rodovia importante) e de ter um acostamento bastante sujo. Outra coisa que é questionável é o hábito dos engenheiros rodoviários de colocar TACHÕES no meio da pista. Acredito que a maioria já tenha notado, mas quando há tachões, fica altamente perigoso para os ciclistas andarem perto do bordo da pista, pois os veículos não têm espaço para dar o proverbial 1,5 metro. Na verdade, eles ficam sem espaço para dar sequer UM CENTÍMETRO de folga, especialmente se forem carretas enormes.
Mesmo assim, um equino colega nosso, que muitos que vão ler isto sabem quem é mas eu não vou dizer o nome, teve a genial idéia de ultrapassar o nosso pelotão, pelo meio da pista, na frente de um caminhão enorme que vinha embalado, justamente em um ponto com tachões no eixo central. O caminhão teve que buzinar, desviar para a esquerda, "atropelar" os tachões em uma velocidade muito acima do recomendável... Um fiasco. Prontamente, alguns colegas foram até lá para repreender o ciclista trapalhão, mas diz a lenda que ele não se comoveu muito. Enfim.
Depois do a entrada do aterro, vem um trecho bem longo (uns 20km pelo menos) longe de qualquer cidade, onde a estrada tem bom acostamento, bem menos movimento, e é bem escura. Naquele trecho, realmente começa a atuar o "clima randoneiro", de seguir pedalando, pedalando, olhando a luz do farol (próprio ou dos outros), em silêncio (pois a conversa já está em dia, e o cansaço começa a bater), numa cadência constante, ora no vácuo de um, ora no de outro... Começam a aparecer novos colegas, tanto porque somos alcançados como porque alcançamos alguém que estivesse mais à frente, e por vezes não temos nem certeza se conhecemos ou não o ciclista que está ao nosso lado, pois toda a identificação que temos dele é a bicicleta, a roupa, o colete e o padrão das luzes. Mesmo aqueles que já foram "identificados" de dia se tornam indefinidos à noite, porque já não é tão fácil, por exemplo, reconhecer o Vitor por seus pernitos azuis característicos...
Esse trecho contou como um daqueles em que a gente deve "desligar" o cérebro e parar de contar os quilômetros, contando mais é a sensação de passagem de tempo, que é mais fácil de trabalhar do que a velocidade real: aquela é subjetiva, é sujeita à imaginação, enquanto esta - a velocidade - é 100% física, real e objetiva. Não temos como pedalar a 100 km/h mesmo se quisermos, mas temos como fazer dez minutos "sumirem" da nossa percepção se arranjarmos algum truque mental para executar.
De truque em truque, chegamos ao primeiro trevo de Pantano Grande e, logo em seguida, à Raabelândia. Todos pediram torrada e suco de laranja, e eu pedi além disso um café com leite. Botei meu celular a carregar numa das tomadas, para que o GPS ficasse garantido, e fizemos toda a "toalete" no banheiro, incluindo especialmente lavar as mãos até os cotovelos e o rosto, bem lavado, para comer com a decência merecida. Ali foi uma parada mais agradável, um PC propriamente dito, onde todos os ciclistas paravam. A Raabelândia definitivamente é um bom lugar, com preços justos e ótima qualidade. Um PC ideal!
Até ali, eu vinha acompanhando pelo meu diagrama mágico (que desenhei a mão sobre um papel milimetrado) e nossa média geral estava em torno de 22 km/h, o que é muito bom em termos de Audax. O vento parecia estar soprando sul, portanto estaria levemente contra durante a subida para Encruzilhada. Após o lanche, todos prontamente se mexeram, e em seguida saímos.
Após um trecho inicial curto num asfalto mais estreito e irregular, saímos na estrada para Encruzilhada, num clima "de sonho" conhecido por quem já fez algum audax noturno em noite de lua: pouco trânsito, a estrada larga e lisa bem visível sob a luz da lua pós-quarto-crescente, assim como a paisagem rural ao redor da estrada, iluminada pelo luar e visível até onde a vista alcançava... Esse seria um trecho relativamente longo (41 km), e demorado, deivido à subida acumulada de mais de 200 metros de desnível. Mas o silêncio da noite, e a paisagem rural em noite de lua, nos dava a certeza de que esse trajeto não precisaria de paciência: era ALI que aproveitaríamos, era PARA AQUILO que estávamos fazendo o Audax, é desse tipo de coisa que tiramos o gosto do pedal.
Nesse trecho, eu já havia colocado as luvas, embora ainda não estivesse com o corta-vento. No ano anterior, ali foi um dos trechos de maior frio, pela altitude e pelo vento contra muito gelado, mas este ano não houve motivo algum para reclamar de frio, estava muito adequada a noite para pedalar, em se considerando aquela região e aquela época do ano. Poderia ser bem pior... À medida que subíamos, alguns ficavam para trás, outros iam para a frente, nessas horas aparecem mais as diferenças entre os que desenvolvem mais na descida, ou no plano, ou na subida. Mas, de um modo geral, o grupo permaneceu o mesmo, com o acréscimo de mais alguns colegas que ainda não sei bem o nome, mas que já estão virando "companhia frequente" durante as pedaladas, provavelmente por termos um ritmo parecido. Algumas paradas foram necessárias, para comer barrinhas de cereal, tomar goles de café da caramanhola, esvaziar a bexiga...
Após um tempo bem considerável, e "bem aproveitado", nesse belo trecho de estrada com um ótimo asfalto, chegamos ao ponto de janta, o Restaurante Franck. Ali me servi com uma dose generosa de macarrão, duas sobrecoxas enormes, assadas, que estavam muito saborosas, algumas batatas doces muito recomendáveis também, e alguma coisinha de salada. Estávamos bem de tempo, com média pouco abaixo dos 20 por hora, o que era bom considerando que dali em diante haveria muita descida, e um vento a favor provavelmente até Santa Cruz.
Ficamos parados em torno de 45 minutos, e a impaciência prontamente se estabeleceu entre meus colegas, o que é ótimo que aconteça pois foi essa tendência minha de "ir deixando o tempo passar" que fez com que minha média geral despencasse para menos de 15 por hora naquele mesmo ponto, no ano anterior...
Partimos e, se não era apenas descida, o caminho continha várias descidas, onde íamos geralmente o Vitor na frente, o Carlão em seguida, e eu atrás, numa linha de vácuo em que conseguíamos controlar nossas distâncias relativas sem precisar frear ou pedalar, apenas indo mais para dentro ou para fora do vento do ciclista à frente, o que era importante também para ver se havia algum buraco ou não (não havia, a estrada lá está realmente ótima!). Enquanto isso, o Graxa seguia sempre uns 500 metros à frente, no seu ritmo que por sinal era parecido com o nosso.
Sempre mantendo a atenção na paisagem, no horizonte, e sem contar minutos ou quilômetros, entramos novamente no acesso secundário e chegamos à Raabelândia, onde tomei um belo suco de laranja, ainda embuchado de tanta janta, e pedi um enorme copo de café preto, que coloquei, bem adoçado, na segunda caramanhola, junto com um outro tanto de água. Esse café, em doses regulares, vinha fazendo o seu efeito pretendido: controlar o sono, e anular algum período de bobeira, que pode ser perigosa à noite.
Antes de chegar à Raabelândia, uniu-se ao nosso grupo o Cesar Dosso, que infelizmente ao sair de lá para pegar sua bicicleta, percebeu que teve um dos seus dois faróis furtado. Me admiro como ele consegue estar sempre sorrindo e encarando bem as adversidades, pois foi isso que ele fez, tipo "paciência, vamos lá", eu acho que eu ficaria muito puto e excessivamente desmotivado se isso acontecesse...
Seguimos rumo a Rio Pardo. Aquele trecho foi muito significativo para mim pois, no ano anterior, o Cesar Dosso, o Ricardo Bolão (que também estava este ano, mas mais atrás) e eu, percorremos todo o trecho até Santa Cruz andando juntos, chegando lá pela manhã. Mais tarde, naquele dia, um a um, todos os três desistiram por cansaço. Este ano, nós três estávamos novamente na mesma prova, no mesmo trajeto, e no caso do Cesar e eu, pedalando juntos o mesmo trecho.
Seguimos em um pelotão de sete ciclistas, que rapidamente de dissipou pois o Cesar foi na frente com mais gente. No Posto Dragão, nos reunimos novamente, comi um pão de queijo onde coloquei muito açúcar dentro (receita minha para aumentar o valor calórico sem aumentar os custos...), e sem muita enrolação seguimos em frente. Logo em seguida, o Carlão furou o pneu, e eu voltei para dar um auxílio. Quando ele já estava quase pronto, ele disse que eu podia seguir, e foi o que fiz. Andei um bom tempo sozinho, com minha luz bem fraquinha do farol vagabundo (o farol do capacete já estava sem bateria), mas felizmente também ali o asfalto era bom, e eu andava sobre a pista. À esquerda, uma enorme lua, já vermelha, se preparava para afundar no horizonte, e quando vinha algum carro, eu aproveitava a luz do próprio carro para observar o acostamento, e descer para fora da estrada.
No pedágio desativado de Santa Cruz, parei para comer duas bergamotas, e o Carlão me passou. Saí atrás dele, e demorei para alcançar, e assim fomos indo até chegar em seguida em Santa Cruz do Sul. Felizmente eu estava com ele, porque a localização exata do PC não estava sobre o trajeto do GPS divulgado no site: estava uma quadra para o lado. Como o Carlão conhecia, segui ele e lá chegamos nós.
Comi o sanduíche de cacetinho feito sob encomenda para o audax, e tomei o caríssimo café com leite que eles servem naquele PC. Pelo menos dessa vez eu sabia que era caro antecipadamente, e além disso não tomei desavisadamente TRÊS como tinha feito no ano anterior...
Ao contrário do Franck, que é um PC frio, o PC de Santa Cruz é bem quentinho. Saímos dali com aquele pesar, mas bastante motivados. Estávamos bem de média, e a alimentação regular, junto com a hidratação e cafeinização constantes, estavam surtindo o efeito. Bergamotas da organização foram especialmente importantes, pois são praticamente um Gatorade natural. Sem falar que o intestino estava trabalhando bem, o que nem sempre acontece em provas longas noturnas (novamente, o horário mais natural da largada, durante a tarde, pode ter a ver com isso).
Logo saímos de Santa Cruz e começamos a subir a serrinha. A força na perna ainda estava boa, e mesmo sem uma marcha muito muito leve, foi possível subir devagarinho sem se matar. O pelotão esticou aos poucos, e durante a subida uma neblina forte começou a atuar. Ao virar o topo, começamos a descer, e não me senti confiante para acompanhar o ritmo de descida do resto do pessoal. Muita neblina, curvas, tachões, ônibus e uma quantidade grande de veículos. Afinal de contas, agora estávamos em OUTRA estrada, com muito mais movimento.
Terminada a descida da serra, meus companheiros definitivamente foram embora, e logo em seguida passei pelo Schuster, que era um PC tradicional nas primeiras épocas do Audax, e entrei na estrada do Vale Verde.
Aos poucos, o barulho de trânsito pesado foi ficando para trás, e começou o barulho de galos, passarinhos e cachorros. A neblina estava forte, e esse súbito alívio de tensão teve um efeito enorme sobre o sono, que começou a se manifestar com uma força irresistível... A ausência de uma referência de horizonte, a ausência mesmo de cor nas coisas - estava tudo cinza - fez com que as pedaladas, e o suceder das pedaladas, assumisse um caráter profundamente monótono, não que fosse desagradável, mas parecia que tinha aberto um tampão da energia dentro de mim, e cada vez mais ia ficando sem energia, sem energia...
Parei um pouco. Comi alguma coisa, tomei um golaço de café, outro de água, e segui. Eu ia indo, com a cabeça pendendo para o lado, naquele silêncio, sem nenhum outro ciclista ao redor, sem praticamente qualquer outro ser humano ao redor exceto um carro que passava a cada dez minutos se tanto, naquele horário (por volta das sete, sete e meia da manhã). Os pensamentos, que normalmente formam uma linha contínua, um levando ao outro, estavam se misturando, como as roupas se misturam quando estão numa máquina de lavar, e linhas de raciocínio absurdas se formavam em um fluxo sem fim, e sem controle, embora consciente. Idéias, impressões, sensações do ambiente ao redor, já estavam se misturando.
Nesse meio tempo, não sei se antes ou depois de comer, ou antes ou depois de delirar de sono, apareceu a subida entre Passo do Sobrado e Vale Verde. Juro que eu dei graças a Deus porque a subida apareceu, pois ao menos era uma referência geográfica naquela paisagem de neblina onde o horizonte tinha o tamanho do planeta do Pequeno Príncipe, e até os açudes da beira da estrada pareciam uma lagoa sem fim que se emendava com o céu...
Foi assim que cheguei ao trevo de Vale Verde, aquele trevo esquisito com uma curva perigosamente fechada no meio... Ao passar por uma entradinha de fazenda, pensei: "é aqui que vou tirar um cochilo". Tirei algumas coisas do bolso, larguei a bike no chão, escolhi um tufo de grama, e deitei com o tufo encaixado bem entre as escápulas, para me virar para trás e dar aquela "estralada" nas costas, esticando os braços pra cima. Bem agasalhado, ali fiquei por não sei quantos minutos, até que acordei quando passou um carro, com o barulho.
Abri os olhos, respirei fundo, me levantei devagarinho, e percebi que o sono tinha passado um pouco. Subi na bicicleta, e comecei a pedalar, a velocidade foi aumentando, aumentando, e consegui retomar um ritmo de cruzeiro decente.
Esse ritmo durou no máximo cinco quilômetros. Embora o sono já tivesse passado, ajudado sem dúvida pela lenta dissipação da neblina, que permitia agora sim apreciar novamente a paisagem rural e a visão do horizonte e do belo relevo da região, agora o que incomodava era a fome, a falta de energia causada pela falta de comida. Estava já sentindo falta de SAL.
Eu sabia que essa hora chegaria, e portanto encostei a bicicleta num barranco de grama, sentei no acostamento de costas para a estrada, e saquei um saquinho de Pingo d'Ouro, o qual comi quase todo, mastigando grandes punhados de cada vez, sentindo aquela massa de farinha salgada crepitando dentro da boca, e transferindo todo o maravilhoso sódio (muito dele oriundo do glutamato de sódio) fluindo pelo meu sangue. Começava a ficar com pressa e com vontade de voltar a pedalar, mas a vontade de continuar mascando os punhadões de salgadinho era maior, e assim fui. Um senhor passou caminhando pelo acostamento, carregando uma sacola de mercado com algumas caixas de leite dentro. "Isso está errado", pensei eu, "um senhor como esse deveria ter uma vaca para tirar leite dela". Mas o senhor foi caminhando, muito tempo depois ele ainda estava somente um pouco mais adiante, na estrada... Vai saber de onde vinha, ou que horas tinha acordado naquele domingo.
Dali a pouco dois ciclistas me passaram. Pelo sotaque, eram "gringos". Logo fui "atrás" deles, que mantinham um ritmo bem firme. Me mantive geralmente ao longe, observando-os ao longo das sinuosas baixadas entre Vale Verde e o Pesque-Pague Panorama, já com intensa iluminação do sol nas colinas, e algumas massas de neblina ainda presentes em um ou outro ponto. Depois de passar o Posto Charrua em uma dessas baixadas, eu sabia que haveria um predomínio de subidas, pelo menos uma delas muito chata, antes de chegar no Panorama. Nessas horas, conhecer um pouco o caminho é a melhor coisa que tem, pois a gente não precisa (não deve!) contar quilômetros, e pode isso sim usar esses pontos de referência conhecidos, de preferência morros distantes, para "navegar" até o destino. Olhar para eles, em seu lento movimento de rotação enquanto percorremos a paisagem, faz o tempo passar mais rápido. Por outro lado, olhar para os números do velocímetro, em seu lento movimento entre a troca dos quilômetros, das centenas, e mesmo das dezenas de metros, faz o tempo passar MUITO MAIS DEVAGAR!!!
Chegando ao Panorama por volta das dez horas da manhã, portanto ainda com oito horas para pecorrer cem quilômetros, foi já uma enorme conquista. No ano anterior, cheguei até ali dentro do carro de apoio. As perspectivas agora eram concretamente positivas, e aquilo de que eu precisava para concluir, eu tinha: ânimo, condições musculares, condições de ficar bem acordado, tempo, e comida disponível.
Meus companheiros de até então já estavam saindo, e foram embora logo depois que eu cheguei. Rapidamente solicitei meu prato de macarrão, e sentei ao sol para comê-lo. A porção foi generosa, e eu comi tudo. A dose extra de sal e gordura do macarrão garantiriam o suprimento até a chegada, podendo então basear meus próximos lanches em líquido e doces. O Cesar Dosso chegou enquanto eu almoçava, para minha surpresa (achei que ele já estava lá adiante!) com uma cara horrível, e contou que ele tinha se perdido em Santa Cruz por quase uma hora antes de achar o PC. Em solidariedade, adiei minha saída para esperar por ele, mas no fim das contas (maldita distração!), ele é que acabou esperando por mim enquanto eu me arrumava...
Saímos por volta das onze da manhã, em um pelotão com uns sete ciclistas, e como eu tinha deixado o telefone carregando de novo, me enrolei com o GPS, ficando pra trás do pelotão logo antes da primeira grande descida. Corri como pude, mas não consegui alcançar o pessoal, que também se dispersou aos poucos. O trecho entre o Panorama e General Câmara tem uma longa série de subidas e descidas, com predomínio de subidas, e depois outra igual, com predomínio de descidas. Esse é outro bom fato pra se conhecer, pois sem contar os quilômetros, e num ritmo apertado para conseguir alcançar o pessoal que ia se afastando (só conseguir ficar vendo um dos ciclistas, que vez que outra ficava visível ao longe em alguma curva), logo logo eu havia chegado no pé da série de subidinhas, depois no ponto mais alto do trecho (por sinal bem bonito, pois dá pra enxergar relativamente longe), depois no final da série de descidas onde está, logo ali, o Posto Ramé.
Foi uma enorme alegria e um alívio chegar no Ramé e descobrir que todo o pelotãozinho que eu perdi na saída do Panorama tinha resolvido parar ali. Imaginei que isso aconteceria, porque a essa altura de um Audax tão longo, e com tanto tempo sobrando, é uma estretégia muito mais esperta fazer um trechinho por vez, não deixando o desgaste se acumular, do que tentar "tocar tudo tri loko azar", e arriscar ficar realmente cansado ou com fome no meio da estrada, longe de algum comércio ou ponto confortável para descansar.
Ali no Ramé foi um local onde além de novos lanches, muitas peças de roupa foram tiradas. A manhã fresca de neblina já tinha se transformado em uma tarde de muito sol, apesar de a brisa cada vez mais forte continuar fresca, como é comum nesta época do ano. Já novamente renovados para seguir pedalando, o Alexandre Pedroso, que havia saído junto com a gente do Panorama, viu que seu pneu estava furado. Ele começou a consertar, e eu avisei que ia indo devagarinho. Na verdade quase todo mundo me seguiu, e o Cesar falou que ia esperar o Pedroso na ponte do Jacuí. Fomos pelo trecho ondulado, uma ondulação após a outra, num ritmo moderado, conversando distraídamente, conversa que fez com que a ponte chegasse logo. Na descida da ponte, com a curva à esquerda, tomamos uma direção diretamente contra o vento. Um amigo com guidão aerodinâmico previsivelmente assumiu sua posição aerodinâmica e apertou o ritmo. Não consegui acompanhar por muito tempo, e um outro camarada de Teutônia, que estava de mountain bike, me ultrapassou e foi atrás do aerodinâmico. Assim novamente o pelotão dissipou, e eu ia vendo os dois cada vez mais de longe, enquanto percorríamos o perímetro de São Jerônimo e alinhávamos em direção a Charqueadas.
Naquele trecho de acostamento ruim e algumas subidas longas, entre São Jerônimo e Charqueadas, veio vindo de longe um ponto vermelho, o Cesar Dosso, que tinha ficado apenas cinco minutos na ponte esperando o Pedroso, e percorremos o trecho urbano de Charqueadas juntos. Um pouco antes do Postaço, o Pedroso nos alcançou e chegamos os três praticamente juntos no Postaço.
Este ano, logo que foi marcado o Audax 300 no trajeto clássico de Vale Verde, eu havia "prometido" que tomaria um café com pastel no Postaço com o Cesar Dosso, a convite dele. Infelizmente isso não foi possível, pois minha bike havia quebrado naquela prova. Pois dessa vez, finalmente, ao chegarmos no Postaço, a primeira coisa que fizemos após assinar a planilha de controle foi pegar os tais cafés (mocaccinos, que são docinhos), e fazer um merecido brinde! Além do café, comi alguns chocolatinhos e alguma bergamota.
Não ficamos muito tempo ali, e logo saímos para o trecho final, por volta das três da tarde, tendo portanto três horas restantes para fazer os últimos 50 km. No trecho plano que vai até as plantações de eucalipto, o Cesar foi puxando, e eu fui aproveitando o vácuo enquanto pude, quando ficou forçado demais eu aliviei o ritmo e ele foi embora. Ao chegar nas plantações de eucalipto, que são onduladas, usei o truque da "referência geográfica" para contar quantos "picos" existem naquele trecho, até chegar na 290. Acho que contei cinco, mas não tenho certeza. O fato é que passa rápido, e logo a gente está desembocando naquela estrada.
Ali, fiz questão de parar no pedágio, onde a Marga e a Marizete estavam conferindo a passagem do pessoal. Fui ao banheiro, e entrei na casinha do pedágio para pegar um copão de café bem doce. Comi alguma coisinha, e quando passaram o Luciano do Rosario e o Gustavo Migliavacca, eu me animei de acompanhar eles. Subi na bike, guardei minhas coisas, e fui. Logo em seguida, eles estavam parados,e eu fui deixando a bike perder velocidade, parando atrás deles. "E aí!", eu falei, e eles "Bah, tudo certo, o bom é que agora O VENTO ESTÁ A FAVOR!". Quando eu ouvi aquilo, me deu uma revolta interna profunda, pois o vento estava, há várias dezenas de quilômetros já, obviamente e cada vez mais CONTRA! Mesmo assim, quando eles se puseram em movimento, fui acompanhando eles, para formarmos um grupo. Entretanto, rapidamente começou a dar "coceira na perna", e eu me despedi deles, seguindo adiante.
Ali naquela planície reta, que tem por volta de 17km, é que o truque da referência geográfica mostra todo o seu valor. Se a gente olhar reto pra frente, vai ver exatamente a mesma estrada durante 17km, exceto um único ponto em que a estrada faz uma curvinha quase imperceptível, ou em que existe algum armazém de grãos, ou o aeroclube, na beira da estrada. Entretanto, se a gente olhar para a direita, tem um morro comprido, que vai se terminando em direção à estrada. Esse morro é costeado por uma estrada de terra que desemboca na 290, tem uma placa "Pesque Pague Havaí" ou algo assim. Dali faltam 10km para a 116. E dali já podem ser vistos, lá na frente tanto os morros de Porto Alegre, quanto, à esquerda, algumas torres de alta tensão que costeiam a 116, e à direita, com alguma atenção, lá na frente, os veículos maiores passando pela 116, no trecho que vai pra Guaíba. Dali, é só ir trocando de ponto em ponto, sempre preferindo olhar mais para o longe do que para o perto, e aos poucos vai chegando o viaduto da 116.
Chegar na 116 foi bom, porque a mudança de direção da estrada, e o fato de haver algumas árvores, fez com que o vento contra desse uma aliviada, permitindo aumentar um pouco a velocidade. Em Eldorado do Sul, uma curvinha para a direita e o vento pegou um pouco mais contra. Subir a ponte móvel foi mais fácil do que eu imaginaria, aparentemente o extensivo treinamento prévio, bem como o cuidado atencioso com alimentação e hidratação durante a noite, tornaram possível subir a ponte com relativa tranquilidade. De longe, avistei o Pedroso subindo a ponte a pé, mas ele começou a descer antes que eu alcançasse ele.
Na descida da ponte, e logo em seguida depois da curva, o vento ficou 100% contra, e eu via o Pedroso ficando cada vez mais e mais próximo. Segui pedalando "resignado", me aproximando cada vez mais dele, e reconhecendo a paisagem de Porto Alegre com cada vez mais detalhe, sabendo que a chegada estava próxima. Antes da penúltima ponte, passei o Pedroso, e já podia ver a fatídica ponte móvel do Guaíba.
Apesar se eu não ver as pessoas falando muito a respeito, nem logo após as chegadas e nem nos briefings, pra mim a ponte do Guaíba é tão estressante e tão perigosa, mas TÃO perigosa e estressante, que ela quase anula a alegria de completar a prova, que acaba sendo substituída pelo alívio de ter sobrevivido, e pela profunda revolta com o descaso generalizado com a segurança de qualquer coisa que tenha menos de uma tonelada de aço em sua composição.
De longe, eu via a ponte com sua sinalização do asfalto nova, cheguei a pensar "nossa, será que asfaltaram e pintaram a ponte?" Confesso que não tive oportunidade de verificar com atenção, pois estando exposto ao que Eduardo Galeano chamou de "rajada incessante de automóveis", e ônibus enormes, e caminhões enormes, eu passei os poucos metros da ponte alternando quatro ou cinco vezes entre ciclos de subir na velocidade menos lenta possível, cuidando no retrovisor; acenar desesperadamente com o braço esquerdo, quando vinha algum veículo imenso como alguma carreta bitrem ou ônibus trans-continental; e parar a bicicleta - literalmente parar - e ficar encolhidíssimo à esquerda, enquanto os monstros de metal, sem espaço para ir sequer meio metro para a esquerda, passavam rugindo seu bafo quente em minha orelha insone... Por algum milagre, após uma curta espera depois do vão móvel, a rajada arrefeceu por instantes, e eu pude mergulhar afoito na alça de acesso à Sertório, tendo que optar entre andar grudado nos veículos que vinham rapidamente fazendo a curva, ou entrar com ambos os finos pneus nas montanhas de lixo metálico que recheiam a "sarjetinha" do viaduto... Felizmente nenhum pneu furou, e ao sair do viaduto não tive de disputar espaço com os veículos que vêm por fora do viaduto. Até mesmo depois, na ruazinha teoricamente tranquila de retorno ao DC, no retrovisor deixaram de aparecer veículos acelerando em minha direção como se eu fosse invisível... Pode ser paranóia, mas é uma paranóia que me parece bem real, pois a experiência dos anos só vem CONFIRMANDO a validade e a necessidade desse cuidado adicional e dessa desconfiança permanente com tudo o que tenha motor.
Chegando no DC, às 17:00 (ainda com uma hora disponível), fiquei feliz por ver os vários amigos que me parabenizavam, comi uma alaminuta, e em seguida peguei a premiação e fui para casa. Não estava me sentindo destruído, apesar da dor nas pernas e nos joelhos que surgira nos últimos trechos contra o vento, mas também não me sentia eufórico. Acho que, por um lado, o fato de que todos os 400 km saíram "dentro da planilha", conforme o previsto, e sem nenhum problema mecânico ou intercorrência de qualquer tipo, fizeram com que os últimos quilômetros, e em especial o momento da chegada, não fossem mais do que a conclusão de um percurso profundamente previsível.
Embora isso não se traduza na satisfação eufórica, ou de alguma outra forma intensa e até comovente que se costuma ver em algumas vitórias ou chegadas, isso me deixou profundamente feliz. Depois de uma série de provas não-concluídas, ter conseguido, justamente em uma prova com distância inédita para mim, ver confirmadas e bem sucedidas todas as minhas estratégias de preparação e execução, foi uma ENORME vitória, e um imenso estímulo para seguir investindo na modalidade.
Como comentário pós-prova, algumas coisas se mostraram dignas de nota:
1) Bolsa de guidão, um item que não pretendo deixar de fora em nenhum audax. Ao contrário do bagageiro traseiro, que além de ser ele próprio um peso, requer extensores que são chatos de mexer, ou que mesmo nas bolsas que não usam extensor requerem que a gente pare de pedalar para pegar algo, a bolsa de guidão tem essa pequena mas fundamental característica: é possível pegar coisas, e em especial COMIDA, sem parar de pedalar. Parar pode significar perder um grupo, o que faz muita diferença. Por outro lado, não pegar algo de que se precisa, seja comida seja roupa, faz com que a gente comece a operar "no vermelho", e isso sempre cobra um preço mais cedo ou mais tarde;
2) Barras de cereal. Chocolate enjoa. Pastelina enjoa. Pastel enjoa. Barra de cereal não enjoa. Ela desce redondo, estufa, é "natural e saudável", e é acesível e fácil de encontrar. Usarei intensamente no futuro.
3) Faróis e luzinhas. Quando eu comecei a fazer Audax, em 2004, a maioria dos faróis bons era halógeno, e os leds ainda eram uma novidade, sendo em geral muito ruins para iluminação. De lá pra cá, não se pode mais falar seriamente em usar halógeno, e os faróis com led estão absurdamente bons, embora os realmente bons sejam caros. Eu fui para a prova usando no guidão um farol ruim a pilha, e um farol melhor, no capacete, recarregável via USB. Pois no meio da noite, quando eu estava sozinho, o farol bom acabou, e eu tive de continuar com o farol ruim. Deu pra continuar, mas eu vou dizer pra vocês, depois que tu vê a diferença, depois que tu te acostuma e ENTENDE a diferença entre um farol que até funciona e um que REALMENTE funciona... Conclusão: vou compar um farol bom ainda este ano, mesmo que seja caro. Outra coisa são as luzes traseiras e os coletes: faz MUITA diferença entre os que são ruins e os que são bons. Quando peguei carro de apoio no último 300, pude ter a visão do motorista (mas com avaliação de ciclista) e realmente FAZ DIFERENÇA quando a gente passa de carro por um colete bom ou por um colete meia boca.
4) Preparo "psicológico". Eu mencionei no início do relato que às vezes a gente se sente, pedalando à noite, como se estivesse atravessando o oceano de canoa. Uma sensação de DESAMPARO. Sensação que em momento algum eu senti durante este 400, e eu acredito que se deva à forma como comparamos a nossa possibilidade com relação ao percurso que nos aguarda. Quando a gente está em dúvida, achando que vai ser difícil, é bem diferente do que quando a gente "tem reserva", e sabe que, se por um lado não vai ser fácil, também não vai ser assim "quase morrendo". Nesse sentido, conhecer o trajeto é importante, já ter feito pedaladas longas é importante, e até por vezes simplesmente ter fé (talvez até uma fé sem noção) pode fazer a diferença. Temos visto muitas pessoas que recém começaram e fazem a série inteira, uma atrás da outra. Eu admiro essas pessoas, acho que, de certa forma - e de certa forma até contraditoriamente - esse é o verdadeiro espírito randoneiro: encarar a aventura, e enxergar a grandiosidade disso, mesmo que na longa estrada sejamos na verdade, cada um de nós, muito muito pequenos. Tags: BRM 400 , relatos , Série 2013
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4 Responses to “Relato Audax 400 SAC - 17 e 18 de agosto de 2013”
22 de agosto de 2013 às 04:21
Helton, longe de achar você um pica pau. Um cara que conhece bike como você é um expert no assunto. Como dizem, um macaco véio. Apenas acho você muito teórico filosófico esquemático, etc... que as vezes fica parecendo um novato no pedal. Mas, cada um com suas teorias sobre pedaladas de longas distancias. Confesso que iria ficar preocupado se tu não completasse, fiquei na expectativa da tua chegada. Abs.
22 de agosto de 2013 às 05:34
Massa....
31 de agosto de 2013 às 20:03
Amanhã vou para o desafio do Horto. Quem sabe um dia eu encare o 400. Vou ler de novo teu relato pois tem informações valiosas. Parabéns!
31 de agosto de 2013 às 20:04
Amanhã vou para o desafio do Horto. Quem sabe um dia eu encare o 400. Vou ler de novo teu relato pois tem informações valiosas. Parabéns!
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